quinta-feira, 10 de julho de 2014

Comentário infeliz, seu filho ainda vai ouvir um.
O que levam adultos a apontarem defeitos nas crianças que nem conhecem?
ISABEL CLEMENTE

"A senhora pensa em operar as orelhas dela?", pergunta o médico para a mãe na frente da criança.
“Não porque até agora ela não estava preocupada com isso”, diz, irritada, a mulher.

“Daqui a pouco já pode fazer escova progressiva”, diz a atendente do cabeleireiro sobre o cabelo da criança. Atônita, a mãe sorri amarelo.

"Essa aí vai gastar dinheiro com depilação", comenta, rindo, uma senhora, enquanto a menina de 5 anos brinca feliz na loja de calçados.

Eu ouvi todos esses relatos de pessoas conhecidas. Certa vez testemunhei um adulto cumprimentando um garoto pequeno assim: "fala orelhudo!", enquanto o moleque pequeno revidava com raiva, socos e pontapés a grosseria, e o homem ria. "Ei, estou brincando". No lugar do menino, eu também não acharia graça na piada.

Eles dois já se conheciam, mas gente capaz de fazer comentários infelizes surge do nada. Não te conhece mas se sente à vontade para externar observações desnecessárias sobre a aparência do seu filho, pior, na frente dele. Essas pessoas não foram chamadas na conversa, não têm intimidade contigo mas são capazes de demolir a autoestima infantil em segundos. Na falta do que dizer, perdem a chance de ficarem caladas.

Pode ser que a pessoa não seja assim tão grosseira. Normalmente, falam o que querem no diminutivo ("Peludinha ela, né?") ou embrulham o discurso ingrato numa pseudo empatia. "Eu também tinha esse cabelo crespinho e agora tá lisinho, viu?", como quem diz "você não precisa sofrer para o resto da vida”. Quem disse que a menina estava sofrendo?

Tem também os que se metem no regime das crianças. Diante de um menino acima do peso comendo brigadeiro não se aguentam. “Você não devia comer tanto doce porque já está muito gordinho”. Se não for o pediatra ou endocrinologista da criança, se nunca trocou a fralda da criatura, se nunca substituiu os pais em nenhuma ocasião nem fez o menino gargalhar de tanto se divertir, não tem o direito de falar algo assim por mais bem intencionado que esteja. Gente, não dá. Tem que ter muita psicologia, simpatia e presença de espírito para mandar bem num encontro tão fortuito com uma criança. É de demolir qualquer um.

Não são comentários inocentes. Entram pelo ouvido da criança como depreciação sem filtro. Compõem um atentado psicológico de efeito retardado. Vai se acumulando e ajudando a cultivar os traumas, que ninguém sabe de onde vêm. A criança passa a se rejeitar a partir de manifestações externas, sem empatia, sem amor, sem uma real preocupação com seu bem-estar. Se não for elogiar, não diga nada. Quanto mais chamativo for o motivo da observação, maior a chance de atingir um ponto fraco da criança.

Você pode ter se desdobrado na conversa mais criativa e profunda com seu filho tentando tirar da cabecinha dele uma preocupação fútil, mostrando que a vida não se resume a isso. E que para tudo tem jeito e, se não tiver, é hora de se olhar no espelho por um ângulo mais favorável, por exemplo, a simpatia e a inteligência - que vêm de dentro.

Você não quer, obviamente, que uma criança de seis anos se torne obsessiva com a ideia de fazer uma plástica, ou que sua menina odeie tanto o próprio cabelo a ponto de imaginar que ninguém vai querer brincar com ela por causa disso, muito menos que uma criança pequena fique sonhando com o primeiro dia de depilação ou com uma escova progressiva. Mas aí chega alguém de fora e mostra para teu filho, na prática, que, infelizmente, sempre haverá pessoas preocupadas sim com a futilidade que nos define.

Tudo isso pode ser muito pior diante de deficiências reais, como o olhar de comiseração diante de uma criança cadeirante. Tem gente capaz de te olhar com cara de enterro como quem diz "pena que não pode correr, não é?". Dependendo da situação, os pais deveriam estar autorizados a dizer "por favor, tire seu olhar do caminho porque estamos felizes hoje".

O mais difícil quando se trata de educar os filhos é ensinar a eles como lidar com o outro, esse imprevisível que cruza nossos caminhos nas mais variadas versões. Pode ser uma surpresa boa ou ruim. A depender do que solta pela boca.

Os espíritos de porco de plantão estão soltos e às vezes escolhem para vítima justamente o mais vulnerável. Crianças até sabem fazer malcriação, em casa, mas não têm respostinhas na ponta da língua à altura de situações verdadeiramente ingratas.

Eu sempre me pergunto o que leva um ser humano a apontar o dedo para o defeito do outro se não estiver em suas mãos ajudar de alguma forma. Comentários infelizes não ajudam, é bom deixar isso claro. Atrapalham bastante ainda mais quando chamam atenção para aquilo que não incomoda nem à própria criança. Parecem ter o único objetivo de afirmar para uma criança: "você não é tão perfeita quanto pensa".

O mundo pode ser cruel, sabemos disso. Nós nos esmeramos para dar educação, ensinar as crianças a cumprimentar, agradecer, falar baixo. Queremos seres dóceis e amáveis mas, nesses casos, sou adepta do "e daí". Vamos ensinar os nossos filhos a dar um curto e sonoro "e daí" caso se sintam incomodados, tristes ou desrespeitados com observações desse tipo lançadas por um adulto sem noção. É uma frase pequena, fácil de decorar e pode ser eficaz se nenhum adulto estiver do lado para defendê-los. Quem sabe assim alguns se sintam desestimulados a vitimarem novas crianças pelo caminho.


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